(ARTIGO) O Prelúdio do Desenvolvimento Sustentável

Titulo: O Prelúdio do Desenvolvimento Sustentável

Autor: José Eli da Veiga

Ano: 

Introdução: Examinadas as circunstâncias concretas em que ocorreu o acréscimo do adjetivo “sustentável” – de uso extremamente restrito até o início dos anos 1980 – ao substantivo “desenvolvimento”, sobressai imenso contraste entre os antecedentes de cada uma dessas duas idéias. Antes de ser usada para questionar a qualidade do desenvolvimento alcançado pelas duas dezenas de países avançados, a noção de “sustentabilidade” pertencia à Biologia, e se referia tão somente às condições em que a extração de recursos naturais renováveis pode ocorrer sem impedimento à reprodução dos respectivos ecossistemas. Evidentemente, foi bem mais complexa, além de muito mais longa, a evolução das idéias sobre o desenvolvimento das sociedades humanas, ao qual vem sendo colado, desde 1987, o adjetivo sustentável. A ambição deste texto é justamente a de sintetizar essa evolução da idéia de desenvolvimento da sociedade desde que ela deixou de ser um simples sinônimo de progresso material, ou enriquecimento. Principalmente porque é o conhecimento dessa pré-história da expressão “desenvolvimento sustentável” que pode evitar que seu uso seja um simples modismo. E isso exige reflexão cuidadosa sobre três diferentes ordens de problemas, ligados respectivamente a três antecedentes: “desenvolvimento econômico”, “crescimento com distribuição de renda”, e “desenvolvimento humano”.

Desenvolvimento Econômico.

Até meados dos anos 1970, o desenvolvimento era sempre identificado apenas com progresso material. Para alguns autores, o enriquecimento levaria espontaneamente à melhoria dos padrões sociais. Para outros, a relação parecia mais complexa, pois o jogo político intervinha, fazendo com que o crescimento tomasse rumos diferenciados, com efeitos heterogêneos na estrutura social. Mas todos ainda viam o desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico. Quinze anos depois, quando surgiu o primeiro Relatório sobre o Desenvolvimento Humano (1990), opanorama já era completamente diferente. O crescimento da economia passara a ser entendido por muitos analistas como elemento de um processo maior, já que seus resultados não se traduzem automaticamente em benefícios. Percebera-se a importância de refletir sobre a natureza do desenvolvimento que se almejava. Ficara patente, enfim, que as políticas de desenvolvimento deveriam ser estruturadas por valores que não são apenas os da dinâmica econômica.

Um crucial momento de inflexão nessa trajetória foi o livro de Celso Furtado. – O Mito do Desenvolvimento Econômico, lançado em 1974.  – Em obras anteriores ele não havia rompido com a abordagem fundadora da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), como assinalou Fernando Henrique Cardoso no texto “O desenvolvimento na berlinda”, de 1979. E uma boa ilustração dessa mudança foi apresentada um quarto de século depois, pelo então presidente da República, em conferência pronunciada em Washington cujo título que dificilmente poderia ser mais incisivo para os propósitos desta coletânea: “Desenvolvimento: o mais político dos temas econômicos”. Lembra que “nas ciências sociais os conceitos são historicamente densos.
Quer dizer: eles precisam redefinir-se sempre que ocorram alterações de alcance estrutural nas relações sociais. Assim, as novas dimensões – ecológicas e até éticas, por exemplo – enriqueceram as noções do desenvolvimento” (Cardoso, 1995). A idéia de desenvolvimento econômico é um simples mito, proclamara Celso Furtado em 1974.

Graças a ela foi possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em outros objetivos abstratos. “Como negar que essa idéia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo?” (Furtado, 1974:75-6).

Os mitos têm exercido uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham em compreender a realidade social. Os cientistas sociais têm sempre buscado apoio em algum postulado enraizado num sistema de valores que raramente chegam a explicitar. Enfim, o mito congrega uma série de hipóteses que não podem ser testadas. Contudo, essa não é uma dificuldade maior, pois o trabalho analítico se realiza em nível muito mais próximo da realidade. A função principal do mito é orientar, em um plano intuitivo, a construção daquilo que o grande economista Joseph Alois Schumpeter (1883- 1950) chamou de visão do processo social, sem a qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. Uma visão pré-analítica. Assim, os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo em que lhe proporciona conforto intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva.

Sempre segundo Furtado, a literatura sobre o desenvolvimento econômico nos dá um exemplo meridiano desse papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos noventa por cento de seu conteúdo se funda na idéia, que se dá por evidente, segundo a qual pode ser universalizado o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideraram a revolução industrial. Os padrões de consumo da minoria da humanidade que atualmente vive nos países altamente industrializados poderão ser acessíveis às grandes massas de população em rápida expansão que formam a periferia. Essa idéia constitui, seguramente, um prolongamento do mito do progresso, elemento essencial na ideologia diretora da revolução burguesa, na qual se criou a atual sociedade industrial (Furtado, 1974:15-16). O mais importante é que a idéia de desenvolvimento está no cerne da visão de mundo que prevalece em nossa época. Nela se funda o processo de invenção cultural que permite ver o homem como um agente transformador do mundo. Foi o que disse bem mais tarde o mesmo Furtado na apresentação da terceira edição revista de uma de suas obras primas: “Introdução ao Desenvolvimento”. A humanidade interage com o meio no empenho de efetivar suas potencialidades.

Por isso, na base da reflexão sobre esse tema existe implicitamente uma teoria geral do homem, uma antropologia filosófica. E é a insuficiência dessa teoria que permite entender o freqüente deslizamento para o reducionismo econômico e sociológico. Todavia, o tema central do estudo do desenvolvimento é a criatividade cultural e a morfogênese social, assuntos que permanecem praticamente intocados. “Por que uma sociedade apresenta em determinado período de sua história uma grande capacidade criadora é algo que nos escapa. Menos sabemos ainda por que a criatividade se orienta nesta ou naquela direção” (Furtado, 2000:7). Existe evidência de que a invenção cultural tende a ocorrer em torno de dois eixos: a busca da eficácia na ação e a busca de propósito para a própria vida. A primeira tem sido chamada de racionalidade instrumental ou formal e a segunda de racionalidade substantiva, ou dos fins. A invenção diretamente ligada à ação supõe a existência de objetivos previamente definidos. Ela gera a técnica. Já a invenção ligada aos desígnios últimos gera valores, que podem ser morais, religiosos, estéticos, etc. O que não se sabe ao certo é a razão pela qual, neste ou naquele momento de sua história, uma sociedade favorece a criação de técnicas e não de valores substantivos. Menos conhecidos ainda são os determinantes que orientam a criatividade de valores substantivos para o plano estético, religioso, político ou do saber puro.

Contudo, insiste Furtado (2000:8): “não temos dúvida de que a inovação, no que respeita aos meios, vale dizer, o progresso técnico, possui um poder de difusão muito maior do que a criação de valores substantivos”. O gênio inventivo do homem foi canalizado nos últimos duzentos anos para a criação técnica, o que explica sua extraordinária capacidade expansiva. E é a esse quadro histórico que se deve atribuir o fato de que a teoria do desenvolvimento tenha ficado circunscrita à lógica dos meios, tendendo a se confundir com a explicação do sistema produtivo que emergiu com a civilização industrial. No entanto, o desenvolvimento deve ser entendido como processo de transformação da sociedade não só em relação aos meios, mas também aos fins (Furtado, 2000:8). O crescimento econômico só se metamorfoseia em desenvolvimento quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida da população. Essa talvez tenha sido a fórmula mais sintética de Celso Furtado para dizer o que é desenvolvimento.

Faz parte de conciso texto publicado no final de 2004 pela Revista de Economia Política: “o crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na preservação dos  privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida dessa população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento” (Furtado, 2004:484). Crescimento com distribuição Quando se admite que é errado reduzir o desenvolvimento ao aumento da renda per capita, é muito comum que imediatamente surja a idéia de que o desafio fundamental, então, seria o da distribuição de renda. Isto é, que o desenvolvimento poderia ser facilmente definido pela combinação do crescimento com a distribuição de renda. Infelizmente o problema não é tão simples, e a melhor maneira de apresentá-la é fazer um breve retrospecto do debate científico sobre o tema.

A primeira contribuição significativa sobre essa relação surgiu em célebre conferência presidencial proferida por Simon Kuznets (1901-1985) ao congresso da associação dos economistas americanos de 1954, e publicada no ano seguinte na American Economic Review. Bem mais tarde, em 1971, ele recebeu o Prêmio Nobel, o que certamente ajudou muito na aceitação e difusão daquilo que ficou conhecido como “curva de Kuznets”, ou “curva do ‘U’ invertido”, sobre a relação entre crescimento e distribuição. Na citada conferência, Kuznets procurou mostrar que as evidências disponíveis faziam pensar que a desigualdade de renda tendia a aumentar na fase inicial da industrialização de um país, ocorrendo o inverso em fase posterior, quando esse país estivesse industrializado (e, portanto, desenvolvido, como se pensava na época). Foi essa a base científica daquela famosa parábola que insistia na necessidade de que o primeiro o bolo
crescesse para que depois fosse repartido. Sua principal intenção foi a de formular a hipótese que as evidências disponíveis apontavam como a mais plausível. Infelizmente, o problema estava justamente na precariedade das evidências disponíveis em 1954 sobre a evolução da distribuição de renda, mesmo no restrito grupo dos países industrializados.

Quem se der ao trabalho de ler o texto, publicado na American Economic Review de março de 1955, não poderá deixar de se perguntar como é possível que tal hipótese tenha gerado um consenso tão largo e tão duradouro na comunidade dos pesquisadores em economia. As únicas razoáveis bases de dados se referiam aos Estados Unidos e ao Reino Unido. Além delas, Kuznets dispunha de boas estatísticas sobre a Prússia e a Saxônia, mas elas não confirmavam as tendências americanas e britânicas, pois tinha havido reconcentração de renda na Alemanha no período posterior à Primeira Guerra Mundial. E para fazer a comparação com os países periféricos, só dispunha de bons dados para a Índia (1949-50), Ceilão (1950) e Porto Rico (1948). Apesar da hipótese de Kuznets sobre uma tendência de longo prazo na forma de “U” invertido” ter se apoiado em base empírica tão modesta, ela foi transmitida a várias  gerações de economistas como se fosse uma lei tão séria quanto a da gravidade. Talvez devido a razões políticas e ideológicas que fizessem as pessoas se apegar a essa idéia, mas também porque quase todos os testes feitos para casos isolados pareciam confirmar a hipótese de Kuznets.

Ela só foi realmente colocada em xeque quarenta anos depois, quando o Banco Mundial terminou a montagem de uma base de dados envolvendo 108 economias nacionais durante quatro décadas. Essencialmente porque mostrou a inexistência de um único padrão histórico de evolução da distribuição de renda. A partir da divulgação dessa base de dados nas páginas da The World Bank Economic Review pelos pesquisadores Klaus Deininger & Lyn Squire (1996), o velho consenso apoiado na hipótese de Kuznets parece estar sendo substituído por outro: de que a estrutura da distribuição de renda é extremamente persistente, seja qual for o crescimento econômico. Isto é, que não resta nada a fazer para atenuar a concentração de renda, independente do que se possa fazer pelo crescimento. Desde a Segunda Guerra Mundial, o crescimento variou muito entre os países, ao passo que a distribuição de renda quase não mudou em termos comparativos. Isto não quer dizer que tenha desaparecido a controvérsia sobre as possíveis vantagens ou desvantagens que poderiam ser proporcionadas ao próprio crescimento por uma melhor distribuição da riqueza e da renda. Há modelos que sugerem, por exemplo, que o crescimento impulsionado por um determinado setor da economia só pode ser durável se os benefícios do surto inicial forem distribuídos de maneira suficientemente homogênea para que permita a expansão e o aprofundamento dos mercados. Tanto mais favorável ao crescimento seria o perfil da demanda quanto menos desigual fosse a distribuição de renda. Outros modelos sugerem que o crescimento será tanto menor quanto maior for a desigualdade de renda e de riqueza no país. Mas as evidências empíricas que poderiam confirmar tais conclusões ainda são insuficientes para que seja abalado o consenso sobre a enorme rigidez das estruturas de distribuição de renda herdadas do passado prémoderno de crescimento. Importante literatura sobre o tema tornou-se bem acessível no Brasil graças aos artigos traduzidos e publicados por Teófilo (2000).

Mesmo assim, o Fundo Monetário Internacional (FMI) promoveu dois importantes encontros sobre o tema (em 1995 e em 1998), cujos trabalhos foram editados por Vito Tanzi e colegas (1998, 2000). A principal intenção dos dois eventos era discutir a relação entre distribuição de renda e crescimento com o objetivo de avaliar se, e como, ela poderia ser melhorada pelas políticas econômicas. Mas essa nobre preocupação foi subvertida pelo principal conferencista do segundo desses encontros: o indiano Amartya Sen. Ele começou perguntando se distribuições de renda e de riqueza seriam mesmo temas centrais para as questões de justiça e eqüidade nos países em desenvolvimento. E ilustrou essa pergunta com uma comparação entre a China e a Índia. Em 1997, os 10% mais pobres da China recebiam apenas 2,2% da renda, enquanto na Índia sua parte era dois terços maior: 3,7%. No extremo oposto, na China, os 10% mais ricos recebiam 30,9% da  renda, enquanto na Índia só lhes cabia 28,4%. Ou seja, haveria mais eqüidade na Índia do que na China se avaliada pela distribuição de renda. Todavia, quase metade a população adulta da Índia continuava analfabeta, enquanto na China não chegava a um quinto. Pior, entre as mulheres o analfabetismo atingia 62% na Índia e 27% na China. É claro que a Índia tinha muito mais habitantes com educação superior, mas isso só realçava a maior desigualdade das oportunidades educacionais na Índia quando comparada à China. O contraste entre os dois países era ainda mais evidente na área da saúde. Sofriam de subnutrição 63% das crianças indianas de menos de 5 anos, contra 17% das chinesas. E a taxa de mortalidade infantil era exatamente o dobro na Índia: 68 por mil contra 34 na China. Em síntese: o papel da renda e da riqueza – ainda que seja importantíssimo – tem de ser integrado a um quadro mais amplo e completo de êxito e privação. A pobreza deve
ser vista como uma privação de capacidades básicas, e não apenas como baixa renda.

Desenvolvimento Humano

Apesar de pobreza ser uma idéia essencialmente econômica, não há como entendê-la sem sua dimensão cultural. Foi Adam Smith quem estabeleceu essa estreita ligação entre privação cultural e pobreza econômica. Não disse apenas que a pobreza assume a forma bruta de fome e privação física, mas também que ela pode surgir nas dificuldades que alguns segmentos encontram para participar da vida social e cultural da comunidade. A lista de mercadorias que contam como “necessidades” não é independente, segundo Smith, das exigências da cultura local. Para ele, os chamados “bens de primeira necessidade” não são apenas aqueles indispensáveis para o sustento, mas todos os que o país considera indigno que alguém não possua. Quando o hábito fez com que, na Inglaterra, os sapatos de couro se tornassem uma necessidade, qualquer pessoa digna passou a ter vergonha de aparecer sem eles em público. A cultura estabelece uma
importante relação entre rendimentos relativos e capacidades humanas absolutas, afirma o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2004.

Aí está uma mudança fundamental no modo de se entender o desenvolvimento. E ela certamente não foi exposta de forma mais sistemática e cristalina do que na série de conferências proferidas entre 1996 e 1997 por Amartya Sen, como membro da presidência do Banco Mundial. Em 1998 ele recebeu o Prêmio Nobel de Economia, e no ano seguinte editou essa série de conferências sob o título “Desenvolvimento como liberdade”. Todavia, é fundamental lembrar que o tratamento que deu à idéia de desenvolvimento na passagem para o século XXI foi um aperfeiçoamento da contribuição que já havia oferecido ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no final dos anos 1980. Ele foi um dos dez consultores internacionais convocados pelo saudoso paquistanês Mahbud ul Haq. Depois de ter trabalhado por muitos anos no Banco Mundial, Mahbud havia formado a convicção de que uma das piores pragas contra o desenvolvimento era a falta de uma alternativa à renda per capita sempre que o problema fosse o de avaliá-lo, ou medi-lo. Como arquiteto do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, que o PNUD publica anualmente desde 1990, seu maior desejo foi o de criar  um indicador sintético capaz de fornecer aos seus usuários uma espécie de hodômetro do desenvolvimento.

Nem seria necessário conhecer profundamente o pensamento de Amartya Sen para prever que ele se oporia a esse tipo de ambição. Se, ao final das contas, desenvolvimento é a expansão das liberdades substantivas, como imaginar a possibilidade de captar tal fenômeno mediante um indicador sintético? E não deu outra. O indiano manifestou ao querido colega e amigopaquistanês seu profundo ceticismo com respeito à idéia de que algum índice pudesse sintetizar a realidade complexa do processo de desenvolvimento. Um breve relato desse diálogo foi feito pelo próprio Sen numa contribuição especial que enviou ao Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 1999. Mahbud concordava com a precariedade inevitável de qualquer indicador sintético do desenvolvimento, mas
insistia que a tirania da renda per capita nunca seria colocada em xeque por um kit de tabelas, por melhores que elas pudessem ser. Os leitores poderiam até admirá-las, mas assim que precisassem utilizar uma medida sintética, voltariam à renda per capita em razão de sua simplicidade e comodidade. Sen recorda que, enquanto ouvia os argumentos de Mahbud, pensava num poema de T.S. Eliot sobre a incapacidade do gênero humano de agüentar realidade em demasia… “Nós precisamos de uma medida, dizia Mahbud, tão simples quanto o PIB – uma única cifra –
mas que não seja tão cega em relação aos aspectos sociais da vida humana”.

Ele esperava que um índice desse tipo, além de complementar o uso do PIB, suscitaria mais interesse pelas demais variáveis que seriam apresentadas nas longas tabelas do relatório. Na citada contribuição especial, o Prêmio Nobel de Economia de 1998 deu sua mão à palmatória. “Devo admitir que Mahbud tinha inteira razão nesse aspecto, e me felicito pelo fato de não o termos impedido de procurar uma medida sumária.” Ou seja, o emprego mais razoável do poder de atração do IDH – o Índice de Desenvolvimento Humano – é aquele que estimula seus usuários a consultarem também o amplo sortimento de tabelas estatísticas e análises críticas detalhadas fornecidas anualmente pelos relatórios. Na concepção de Sen e de Mahbud, só há desenvolvimento quando os benefícios do crescimento servem à ampliação das capacidades humanas, entendidas como o conjunto das coisas que as pessoas podem ser, ou fazer, na vida. E são quatro as mais elementares: ter uma vida longa e saudável, ser instruído, ter acesso aos recursos necessários a um nível de vida digno e ser capaz de participar da vida da comunidade. Na ausência destas quatro, estarão indisponíveis todas as outras possíveis escolhas. E muitas oportunidades na vida permanecerão inacessíveis. Além disso, há um fundamental pré-requisito que precisa ser mais explicitado: as pessoas têm que ser livres para que suas escolhas possam ser exercidas. Para que garantam seus direitos e se envolvam nas decisões que afetarão suas vidas. Na verdade, o objetivo básico do desenvolvimento é alargar as liberdades humanas. O processo de desenvolvimento pode expandir as capacidades humanas, expandindo as  escolhas que as pessoas têm para viver vidas plenas e criativas. E as pessoas são tanto beneficiárias desse desenvolvimento, como agentes do progresso e da mudança que provocam. Este processo deve beneficiar todos os indivíduos eqüitativamente e basear-se na participação de cada um deles. Esta é a abordagem do desenvolvimento que tem sido defendida por todos os Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, desde o primeiro, em 1990.

A gama de capacidades que os indivíduos podem ter e as escolhas que podem ajudar a expandir essas capacidades é potencialmente infinita, embora varie muito conforme a pessoa. Porém, a política pública trata de fixar prioridades e há dois critérios úteis na identificação das capacidades mais importantes para avaliar o progresso mundial na realização do bem-estar humano, objetivos dos Relatórios. Em primeiro lugar, essas capacidades devem ser universalmente valorizadas. Em segundo, devem ser básicas para a vida, no sentido de que sua ausência impediria muitas outras escolhas. Por essas razões, os Relatórios incidem nas quatro capacidades mencionadas acima: vida longa e saudável, conhecimento, acesso aos recursos necessários para um padrão de vida digno e participação na vida da comunidade. O Relatório de 2004 enfatiza que o desenvolvimento depende da maneira como osrecursos gerados pelo crescimento econômico são utilizados: se para fabricar armas ou para produzir alimentos; se para construir palácios ou para fornecer água potável. E resultados humanos como a participação democrática na tomada de decisão, ou igualdade de direitos para homens e mulheres, não dependem dos rendimentos. Por isso, o PNUD admite que o IDH é um ponto de partida. Recorda que o processo de desenvolvimento é muito mais amplo e mais complexo do que qualquer medida sumária conseguiria captar, mesmo quando completada com outros índices. Ou seja, o IDH não é uma medida compreensiva, pois não inclui, por exemplo, a capacidade de participar nas decisões que afetam a vida das pessoas e de gozar o respeito dos outros na comunidade. Como diz o Relatório de 2004, uma pessoa pode ser rica, saudável e muito instruída, mas sem essa capacidade o desenvolvimento é retardado. A omissão dessa dimensão cívica tem sido realçada desde os primeiros Relatórios, e levou o PNUD a criar um índice da liberdade humana, em 1991, e de um índice da liberdade política, em 1992. Nenhuma dessas medidas sobreviveu ao seu primeiro ano, o que testemunha a dificuldade de quantificar adequadamente aspectos tão complexos do
desenvolvimento.

A saída foi tratar extensivamente desses temas, mas de forma mais qualitativa. Em 2002, o tema foi a democracia, por exemplo, e em 2004 o Relatório foi dedicado à liberdade cultural expansão da liberdade é vista por Amartya Sen como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento. Consiste na eliminação de tudo o que limita as escolhas e as oportunidades das pessoas. O crescimento econômico obviamente pode ser muito importante como um meio de expandir as liberdades desfrutadas pelos membros de uma sociedade. Mas as liberdades também dependem de muitos outros determinantes, como os serviços de educação e saúde, ou os direitos civis. A industrialização, o progresso tecnológico ou a modernização social podem contribuir substancialmente para a expansão da liberdade humana, mas esta depende também de outras influências. Se a liberdade é o que o desenvolvimento promove, então existe um argumento fundamental em favor da concentração dos esforços de análise nesse objetivo abrangente, e não em algum meio específico ou alguma lista de instrumentos especialmente escolhida. O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência de Estados repressivos.

O âmago da questão.

O âmago da questão reside, portanto, na dificuldade de preservar e expandir as liberdades substantivas de que as pessoas hoje desfrutam sem comprometer a capacidade das futuras gerações desfrutarem de liberdade semelhante ou maior. Por isso, o desgaste da camada de ozônio, o aumento do efeito estufa, e as perdas de biodiversidade, são três dos problemas globais que explicitam a natureza dos grandes conflitos sociais contemporâneos. Mesmo que se atribua absoluta supremacia ao antropocentrismo, ainda assim a questão central é a de garantir condições para que as futuras gerações possam desfrutar de liberdade bem maior que a atual. Não poderia ter sido mais oportuna, então, a exposição dessa tese pelo próprio Amartya Sen. São transcendentes duas de suas observações em curto artigo de 2004. A primeira é a crítica ao que muitos supõem ser o “conceito” de desenvolvimento sustentável. A versão original, do Relatório Brundtland, comparava as “necessidades” desta e das próximas gerações. Na forma ampliada por Robert Solow, a comparação passou a ser entre “padrões de vida”. Mas está ausente das duas versões a liberdade dos humanos para salvaguardarem aquilo que valorizam e aquilo a que atribuem importância. Nossa razão para valorizar determinadas oportunidades não precisa sempre derivar da contribuição que elas oferecem ao nosso padrão de vida. A segunda observação se refere ao senso de responsabilidade quanto ao futuro das espécies. É justamente pelo fato de a espécie humana ter conseguido se tornar a mais poderosa, que ela deve ter responsabilidade para com as outras, em generoso e altruísta esforço por minorar tal assimetria. Se uma comunidade humana demonstra preferência pela conservação de determinado ecossistema, em vez da implantação de um parque de diversões, por exemplo, isto só pode ser sinal de que interesses estreitamente paroquiais se subordinaram a uma bem mais vasta atenção global a valores morais e estéticos. Mas estas são considerações que já pertencem à história, e não à pré-história, do ideal de “desenvolvimento sustentável”, assunto tratado de forma mais ampla em Veiga (2005).

Leituras mais recomendadas

Para lastrear e aprofundar uma compreensão do fenômeno do desenvolvimento deve-se dar muita atenção a tudo o que foi escrito pelo magnífico trio formado por Celso Furtado, Amartya Sen e Ignacy Sachs. Como quase toda a vastíssima obra de Furtado é dedicada a este tema, uma maneira de ir direto ao ponto é ler as quatro referências deste texto em ordem inversa à cronológica. Isto é, começar pelo conciso e recente artigo publicado no número 96 da Revista de Economia Política, que pode até ser entendido como seu testamento. Passar em seguida ao estudo da terceira edição revista da Introdução, de 2000, acompanhado do fácil desfrute da pequena pérola O Capitalismo Global, de 1998. E só depois encarar a leitura um pouco mais árdua, que faz a ponte para o tema da sustentabilidade: O Mito do desenvolvimento econômico, de 1974. Não é necessário ir muito além da leitura de Desenvolvimento como liberdade para se apropriar da contribuição de Amartya Sen. É uma obra de síntese, que remete o leitor aos inúmeros trabalhos anteriores sobre temas mais específicos. Mas também seria ilusório recomendar a imediata leitura do livro inteiro a um estudante de graduação. Por isso, a sugestão é que leia e releia, com muita atenção, pelo menos os três primeiros capítulos, onde são esmiuçados os fins e os meios do desenvolvimento. Depois de Furtado e Sen, o leitor certamente vibrará com os dois pequenos livros de Ignacy Sachs lançados pela Garamond. O conselho é que comece pelo mais recente – Desenvolvimento – seguido da perspectiva de futuro proposta em Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável. E é claro que esta lista estaria imperdoavelmente incompleta sem enfática recomendação de consultas aos Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, publicados anualmente pelo PNUD desde 1990.

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