(PAPER) – Migrações forçadas na pandemia: quem quer voltar e quem não quer sair

Titulo: Migrações forçadas na pandemia: quem quer voltar e quem não quer sair

Autora: Talita Gantus de Oliveira – Doutoranda – IG/UNICAMP

Ano: 2020 – Campinas, 13 de Maio de 2020

Há mais de 40 dias isolada em casa, em solo paulista, sinto saudade das terras mineiras onde nasci, e lembro com pesar da viagem para lá agendada, que aconteceria no último feriado. Interrompo as leituras sobre racismo ambiental e violências na mineração para uma pesquisa que venho fazendo em um grupo numa universidade que trabalha com questões que envolvem o desastre-crime de Brumadinho.

Resolvo, então, procurar notícias sobre a relação das temáticas com o cenário atual de pandemia. Foi quando me deparei com uma foto, de cortar o coração, de uma senhora em uma notícia: debaixo de forte chuva sobre o Bairro Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, a dona de casa, de 82 anos, se abrigava sob a sombrinha, à espera de uma carona. Queria retornar a Casa Branca, outro bairro do município, a 13 quilômetros. Mas, desde que a pandemia da Covid-19 impôs restrições ao convívio social, não há mais acesso ao transporte público. Um motorista de ônibus para, mas lamenta, injuriado, que não poderia ajudar a senhora, pois estava indo em outro sentido. Resignada, ela seguiu esperando por uma carona, enquanto dizia não ter medo da doença causada pelo novo coronavírus. “Preciso é ir para casa. Não tenho medo de nada, não. Se nem a barragem me pegou… Aqui, a gente está abandonada. Mas já estou mais para lá do que para cá… Estou é na hora de morrer, já”, desabafou a senhora ao jornalista, em um misto de resignação e cansaço.

Numa live, o líder indígena Ailton Krenak disse que o barulho dos trens que transportam o minério da Vale de Minas para o Porto de Tubarão, no litoral do Espírito Santo, parecia ainda mais feroz nesses tempos de pandemia. Como se a mineradora estivesse aproveitando o caos instalado, que evidencia um colapso ambiental iminente, para extrair o que ainda resta deste pedaço de terra chamado Brasil. Como uma demonstração de pressa em engolir e triturar montanhas para carregar navios enviados para o outro lado do mundo. Ou, como disse brilhantemente Carlos Drummond de Andrade: “O maior trem do mundo / leva a minha terra / para a Alemanha / leva a minha terra / para o Canadá / leva a minha terra / para o Japão / o maior trem do mundo / puxado por cinco locomotivas a óleo diesel / engatadas geminadas desembestadas / leva meu tempo, minha infância, minha vida / triturada em 163 vagões de minério e destruição (…)”

Continuo lendo mais notícias que denunciam o descaso no qual Brumadinho e seu entorno se encerram, agravado pela Covid-19. Tentativa vã. A grande mídia segue a mesma cartilha do cronograma imposto por aqueles que sentam atrás das cadeiras, e que dão as canetadas que garantem que a exaustão de terras arrasadas se transformem em ativos financeiros, enriquecendo carteiras virtuais de minorias. Os jornais alardeiam: “a mineração não pode parar!” Outros anunciam: “Vale doa testes para salvar a saúde dos brasileiros.” Alguns poucos denunciam a real situação: a de um sistema de exploração mineral que não dá trégua nem diante de uma crise sanitária de múltiplas proporções.

Venho pesquisando quais ações estão sendo tomadas pela mineradora depois rompimento da barragem de Córrego do Feijão, que gerou inúmeros problemas socioambientais naqueles territórios. Qual assistência ela vem dando às populações que sofreram com o impacto de uma migração forçada? Como tem sido o gerenciamento desse isolamento para os atingidos? Que efeitos o isolamento traz para essas pessoas que estão morando em locais provisórios, em um pedaço de chão que não sentem ser delas? Quais as dificuldades enfrentadas num cenário que as levou à perda de seus vínculos, em que os laços comunitários foram desfeitos? – tanto pelas mortes que o rompimento acometeu, quanto pelas migrações forçadas que desfizeram a estrutura das redes de apoio.

O Brasil enfrenta múltiplas crises de deslocamento forçado. Desde 2016, milhares de venezuelanos cruzaram a fronteira com o Brasil em busca de segurança e sobrevivência. O país também recebe refugiados de mais de 80 nacionalidades, além de um número alto de migrantes haitianos. Mas, muito menos visíveis, no entanto, são os milhões de brasileiros que são forçados a se deslocarem em função de desastres naturais, da violência sistemática e de empreendimentos de desenvolvimento. Não só de empreendimentos que falham miseravelmente – como as barragens de rejeito que se romperam; mas de empreendimentos que, por meio de alianças, geram uma especulação imobiliária tão absurda que uma cidade se torna várias, de tão marcada pela segregação sócio-espacial. Na Região Metropolitana de São Paulo, mais de dez mil famílias perderam suas casas no último ano e mais de duzentas mil estão ameaçadas de remoção. Os deslocamentos dessas pessoas, em situação já precária, colocam-nas ainda mais expostas ao vírus, ao compartilharem habitação com outras famílias e, em casos extremos, ao irem morar na rua.

Enquanto a senhora de 82 anos tentava voltar para casa em Brumadinho, outras tentam permanecer em suas casas em uma situação que não poderia parecer mais catastrófica do que já é. Alternando mistos de desânimo, otimismo e força de vontade, o pensamento que reverbera na minha mente é só um: se sairmos os mesmos dessa pandemia, cenários devastados pela destruição triunfarão como produto da ganância. Os impactos da pandemia não são uniformes nem homogêneos para todos, e as condições que as pessoas têm de lidar com eles também não. Com isso, qualquer estratégia de combate, de prevenção ou de atendimento à Covid-19 precisa ser pautada pelas condições materiais específicas de cada local de ação.

Link: https://cemiunicamp.com.br/observatorio-no-47/

 

(ARTIGO) Brasil, o País das injustiças socioambientais nas tragédias anunciadas.

Titulo: Brasil, o País das injustiças socioambientais nas tragédias anunciadas.

Autor: Anderson Kazuo Nakano

Ano: 2019

No Brasil, quando acontece alguma tragédia impactante que mobiliza todos os meios de comunicação e comove a opinião pública nacional e internacional, é comum ouvir a frase “é uma tragédia anunciada”! Uma vez ocorrida a tragédia, essa frase passa a ser repetida e propagada tanto nas denúncias quanto nas matérias e noticiários elaborados pelos profissionais do jornalismo, bem como nos comentários de especialistas convocados para dar as suas declarações que são inseridas em reportagens transmitidas pelos jornais, rádios, computadores, telefones celulares e televisões. Com os rompimentos recentes da barragem do Fundão da SAMARCO/Vale/BHP Billiton, em 2015, e da barragem do Córrego do Feijão da Vale, em 2019, ambas no estado de Minas Gerais, voltamos a ouvir a frase trágica: tragédia anunciada. Ela evidencia, no Brasil, a falta de prevenção mesmo diante de avisos prévios emitidos por vozes técnicas e políticas que alertam com insistência para perigos iminentes. Por que não aprendemos com o rompimento da barragem da SAMARCO/Vale/BHP Billiton em Mariana e não adotamos medidas preventivas para evitar o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho?

O fracasso no estabelecimento de legislações mais rígidas para evitar a recorrência de tragédias anunciadas mostram com contundência que, no Brasil, recusamos gerir preventivamente as causas das tragédias e preferimos gerir emergencialmente as consequências dessas tragédias. Essa inversão antiética prioriza os lucros econômicos em detrimento de vidas humanas, dos ecossistemas e das biodiversidades. No caso do rompimento da barragem do Córrego do Feijão da Vale, a recusa em relação à gestão preventiva das causas dessa tragédia anunciada reflete o desprezo que a lógica corporativa-empresarial, dominado pelo sistema globalizado das finanças, tem pelas vidas humanas e pelo meio ambiente locais. Esse desprezo contrasta com a prioridade dada aos esforços voltados para a redução dos custos de produção e para a obtenção de lucros e ganhos financeiros.

ENROLAÇÃO E A FALTA DE DIÁLOGO COM A COMUNIDADE

Na carta divulgada pelo Movimento Águas e Serras de Casa Branca (“Nossa Terra Sangra, Nosso Povo Chora, Nossa Luta Continua”), surgido em 2010, “na comunidade de Jangada, vizinha do complexo minerário Paraopebas e do Córrego do Feijão”, mostra com clareza o desprezo pela gestão preventiva e participativa na eliminação e redução das causas de tragédias anunciadas. Esse desprezo aparece na desonestidade e na recusa da Vale em dialogar com a sociedade civil que vive nas áreas impactadas por suas atividades. Na carta ainda se lê que o Movimento Águas e Serras de Casa Branca exigiu, “na ocasião da votação da renovação da licença de operação da mina de Córrego do Feijão, que a companhia se relacionasse com a população diretamente atingida para informar suas atividades e pretensões no território e considerar a opinião dos moradores a respeito”.

A exigência de uma relação da empresa com a comunidade deu origem ao “Fórum de Relacionamento com as Comunidades da Jangada/Casa Branca e Córrego do Feijão”. Depois de “um ano e maio de reuniões bimestrais nas dependências da Vale S.A.”, continua a carta, os membros do Movimento abandonaram “o espaço devido às regras e métodos definidos pela empresa, à omissão e à manipulação de informações”. Segundo a carta, os membros daquele Movimento não podiam “fotografar, filmar e (…) ter acesso às apresentações ali realizadas pelo corpo técnico da mineradora. Além disso, as atas não refletiam tudo o que havia sido debatido”. Os membros do Movimento Águas e Serras de Casa Branca chegaram a levar, sem sucesso, suas denúncias para assembleias anuais de acionistas da Vale realizadas no Rio de Janeiro. Além de “enrolar” os membros da sociedade civil organizada preocupados com sua segurança e com o futuro dos seus territórios, a Vale também atua junto a diferentes órgãos e instâncias governamentais a fim de evitar a adoção de medidas preventivas capazes de evitar as causas de tragédias anunciadas provocadas por suas atividades, visando obter vantagens indevidas. É de conhecimento público o trânsito de pessoas entre cargos de direção na Vale e em órgãos governamentais responsáveis pela regulação das atividades da mineração. Essas pessoas atuam e influenciam a elaboração, instituição e implementação das normas que regulam as atividades da mineração no país, bem como os aparatos e procedimentos de fiscalização na aplicação dessas normas. Além da “porta giratória” entre a Vale e diferentes instâncias governamentais, há financiamentos de campanha e lobbies constantes em favor dos interesses privados dessa empresa.

GESTÃO DAS CONSEQUÊNCIAS EM VEZ DE PREVENÇÃO DAS CAUSAS

Ainda em relação ao mesmo crime presente no rompimento da barragem do Córrego do Feijão da Vale, a preferência pela gestão das consequências dessa tragédia anunciada (em detrimento da prevenção das suas causas), além de refletir aquele desprezo pelas vidas humanas e pelo meio ambiente, reflete também a injustiça presente na disseminação dos riscos e perigos gerados pela busca gananciosa por lucros e ganhos financeiros destinados aos executivos e acionistas da Vale. Trata-se de uma injustiça porque, após a ocorrência da tragédia anunciada, as vítimas acabam lidando individualmente com boa parte das consequências, muitas vezes por conta própria, com o auxílio inexistente e insuficiente tanto da Vale quanto do poder público. A preferência pela gestão emergencial das consequências da tragédia anunciada reflete também a certeza de impunidade dos responsáveis da Vale e do governo pelas tragédias que causam, bem como a garantia de redução e minimização das perdas e prejuízos provocados pelo pagamento de multas, indenizações e pela realização de ações compensatórias relativas às consequências dessa tragédia. As “Observações Preliminares da Missão da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale em Brumadinho”, realizada entre 29 de janeiro e 5 de fevereiro de 2019, mostram a veracidade dessas afirmações. Essa Articulação reúne, desde 2009, grupos do “Brasil, Argentina, Chile, Peru, Canadá, Moçambique, com o objetivo central de contribuir no fortalecimento das comunidades em rede, promovendo estratégias de enfrentamento aos danos ambientais e às violações de direitos humanos relacionados à indústria extrativa da mineração, sobretudo decorrentes da atuação da Vale em diversos Estados do Brasil e em outras partes do mundo”. O Movimento Águas e Serras de Casa Branca mencionado antes participa da Articulação.

Após a ocorrência da tragédia anunciada, as “Observações Preliminares da Missão da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale em Brumadinho” denunciam o controle e manipulação da Vale sobre as informações e seus canais, os postos de atendimento, os movimentos sociais, as associações comunitárias, os meios de comunicação, equipes de atendimento de órgãos públicos, voluntários, demandas sociais, dentre outros elementos. Denunciam também a desassistência por parte da Vale em relação às condições de alojamento e de moradia das vítimas atingidas pela tragédia anunciada, bem como a falta de transparência em relação a planos emergenciais e laudos técnicos. As Observações Preliminares também levantam suspeição em relação às doações em dinheiro para as famílias. Essas doações foram feitas pela Vale mediante assinatura de um suspeito termo de doação que não foi disponibilizado publicamente. Essas denúncias e suspeições dão motivos para preocupações e suspeitas em relação às responsabilizações criminais que devem recair com a carga devida sobre a Vale e autoridades públicas culpadas pelos crimes envolvidos na tragédia anunciada. Tais preocupações e suspeitas se estendem para possíveis injustiças socioambientais no pagamento de multas, indenizações e realização de ações compensatórias. Essas suspeitas não são nem um pouco infundadas se pensarmos na maneira como foram tratadas as consequências socioambientais do rompimento recente da barragem do Fundão da SAMARCO/Vale/BHP Billiton.

Um país de tragédias anunciadas não é somente o país que despreza e ignora a prevenção. É também o país que não aprende com as tragédias ocorridas ao longo de sua história e, por isso mesmo, é um país que está condenado a repetir eternamente tais tragédias. Isso vale também para as tragédias eleitorais.

*Professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (IC-Unifesp)

Brasil, o país das injustiças socioambientais nas tragédias anunciadas

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