(PAPER) O Planeta está nos dando um recado?

Titulo: O Planeta está nos dando um recado?

Autor: Daniel Neri – CREAB/UNICAMP – FPN

Ano: 2020

Em matéria do dia 25 de Março no conceituado jornal Inglês The Guardian, intitulada “A Natureza está nos mandando uma mensagem”, Inger Andersen, Diretora Executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, envia um alerta aos povos. Segundo a economista, ex-vice-presidente da ONU para o Oriente Médio e África, “a humanidade está pressionando demasiadamente o mundo natural com consequências prejudiciais” e alertou que “não cuidar do planeta significa não cuidar de nós mesmos”.[1]

A dinamarquesa se baseia no fato de que a expansão humana sobre espaços selvagens tem originado as últimas epidemias sérias como a Sars (gripe aviária), o Ebola e, neste momento, a COVID-19, e destaca o fato de 75% das doenças infecciosas emergentes têm origem na vida selvagem.

O chamado vem num momento em que o mundo segue debatendo sobre quais são os meios mais eficazes para reduzir no número de mortes causadas pelo Corona Vírus e, ao mesmo tempo, impacte ao mínimo a economia, nos âmbitos locais e global. Andersen afirma que a doença originária na China é um “claro tiro de alerta”, e que nossa civilização está “brincando com fogo”.

Sou marxista, portanto afeito a um materialismo histórico e ateu. Logo, suponho que você imagine que ideias como “o planeta está nos mandando mensagem”, ou “a natureza está dando o troco” não fazem muito sentido para mim. Na verdade, penso que tais construtos não servem nem como elemento simbólico ou metáfora. O planeta está sendo planeta. A vida selvagem sendo vida selvagem. Simples assim. Já passamos por diversas extinções em massa e a vida sempre se renovou ou recomeçou de algum ponto. Se os humanos acabarem com a vida na Terra, ela – e todo o universo, com seus 100 bilhões de bilhões de estrelas, diga-se de passagem, vão seguir suas histórias indiferentemente.

Embora reivindique esse simbolismo da Gaia, a Mãe-Terra, a Deusa-Primordial, a executiva nórdica abre mão desse simbolismo rapidamente ao apontar que o problema está no fato relativamente simples de invadirmos o habitat natural de espécies selvagens. Assim, é natural que passemos a ser contaminados por microrganismos para os quais não fomos adaptados ao longo do nosso processo evolutivo.

Não tem nada de excepcional nisso. Ou surpreendente. Nada de holístico, espiritual ou energético. Isso é biologia básica, que o Darwin começou a nos ensinar há quase 200 anos.

Mas o que me incomoda no convite que a gestora máxima das Nações Unidas para o meio ambiente nos faz não é o caráter obscuro da sua hipótese do suposto “recado” do planeta aos terráqueos ante essa que pode ser a maior pandemia dos tempos modernos. Meu estranhamento é anterior. Ele vem da percepção sobre o número crescente de pessoas das ciências e da academia que acabam “incorporando” discursos fatalistas para a problemática ambiental, como se os problemas que vivemos hoje não tivessem uma causa objetiva, material, concreta, e que nos cabe apenas a tarefa de mitigar os efeitos pensando nas gerações futuras.

É assustador como, diante da caos que a própria ONU ajuda a mapear, não se critica o papel dessa organização nesse cenário. Afinal, não é óbvio que o capitalismo está por trás dessa hecatombe ambiental que já assumiu escala planetária? E, ao mesmo tempo, também não é evidente que a Organização que controla o Banco Mundial e o FMI é aquela que defende os interesses das nações imperialistas dentro das Nações “Unidas”?

Marx, nos idos de 1860, plantou a semente que do que hoje se revela certeza inquestionável. Nenhum pesquisador sério que estude meio ambiente tem dúvidas sobre o fato de que estamos esgotando recursos e poluindo o planeta num ritmo impossível de ser revertido, e que já comprometemos seriamente a possibilidade da vida como conhecemos para as futuras gerações.

A ONU, desde a sua fundação, faz muito bem o papel de amortecer esse debate. A mesma entidade que define em seu conselho de segurança quem pode matar, que coage com seus empréstimos quem pode se desenvolver, estimula e faz o debate da questão ambiental “corretamente”. Suas agências, OMS, UNESCO, IPCC, fomentam programas, incentivam pesquisas, doam recursos, fazem campanhas, salvam vidas, mas nunca, nunca vão ao cerne da questão.

Atualmente é crescente o número de autores que discutem a temática ambiental e que apontam que a humanidade e a vida no planeta só têm futuro se começarmos a buscar saídas fora do capitalismo. No entanto, infelizmente, muitos deles insistem em negar o socialismo como opção; sustentam que a queda da União Soviética e a “reconversão” da Rússia e China ao capitalismo é a prova de que o socialismo fracassou. Alheios à teoria marxista, defendem um mundo futuro pós capitalista, mas nunca fazem essa discussão sob o ponto de vista da nossa classe, dos trabalhadores, dos países periféricos e super explorados. Apontam soluções que viriam como uma espécie de tomada de consciência global, uma percepção coletiva de que, estando à beira do abismo, as corporações, os grupos financeiros, as superpotências iriam perceber os recados de Gaia e, magicamente, romperiam com esse modo cancerígeno de sugar o planeta.

Essas pessoas, ainda que imbuídas de um espírito honestamente preocupado e consciente dos riscos que a humanidade e toda a biodiversidade atualmente correm, apresentam pseudo soluções que não mexem no coração do sistema capitalista: o latifúndio e a propriedade privada dos meios de produção, a super exploração do trabalho, a absurda concentração de renda e riqueza.

Assim, esse discurso “crítico” acaba arrastando uma legião de estudantes, professores e pesquisadores para certo tipo de limbo: forma pessoas anticapitalistas, ou pelo menos, que compreendem que a vida não persiste com ele, porém não oferece qualquer alternativa concreta de como podemos superar ou mesmo acabar com ele.

Reproduzem-se, então as mensagens que tanto interessa a quem mais usufrui do modo de produção capitalista: os países do norte global, as elites, a burguesia mundial. Entram em ação, a UNESCO, O IPCC, a OMS, com suas mensagens que apelam à conscientização e ação individuais: menos plástico, menos canudinhos, menos descartáveis, mais reciclagem, cada gota conta, objetivos do milênio, objetivos do desenvolvimento sustentável, acordos de Estocolmo, Kioto, Paris, Agenda 2030, 2050, 2100…

Enquanto isso segue em curso e de modo crescente a mineração em larga escala, o uso desenfreado e desregulado de agrotóxicos, aumento ininterrupto de exploração de petróleo e seus derivados, movidos por absoluta necessidade de ganhos e acumulação infinitos.

É muito aflitivo não termos movimentos de classe que se organizem de modo contundente, capazes de enfrentar coletivamente o capitalismo global, mas aflige ainda mais ver como grande parte da classe intelectual segue hipnotizada nesse limbo da discussão ambiental atual. Dá a impressão que se mobilizar e construir um enfrentamento real ao capitalismo e às consequências da exploração desenfreada é tarefa dos outros. Que o papel da academia é somente alertar para o grito de Gaia.

Não que se espere que a revolução que vai derrubar esse modelo será construída na academia. Quando ela acontecer, será fruto da falência obrigatória do sistema capitalista, que, por sua essência, é insustentável. Mas me resta frágil esperança de que ela possa ganhar força e ser orientada por mais pessoas como nós, que temos o privilégio de não sofrer diretamente as consequências da exploração desenfreada e ainda temos a chance de ler e compreender, estudar, pesquisar. É inadmissível que a classe intelectual e científica mundial que vê, compreende e critica os efeitos do capitalismo globalizado não seja capaz de atuar, de fato, na sua superação.

[1] https://www.theguardian.com/world/2020/mar/25/coronavirus-nature-is-sending-us-a-message-says-un-environment-chief

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